Na manhã seguinte, o calor chegou antes mesmo do sol tocar a copa da mangueira do quintal. Cibele e Júlio haviam conseguido permissão para tomar café da manhã na casa de Bruno e seguiram direto para a casa do amigo. Nem precisaram tocar a campainha: quando os dois irmãos chegaram ao portão, os latidos frenéticos de Bidú foram mais do que suficientes para alertar toda a casa. Bruno apareceu todo animado para abrir o portão, seguido do grito do pai para, “pelo amor de Deus”, calar a boca do cachorro.
Assim que entraram, Cibele deu um abraço apertado no amigo. Bruno, como sempre, ficou desconcertado: engasgou com a própria saliva, tossiu de leve e tentou sorrir, mas o rosto inteiro já entregava o embaraço. Júlio, por trás, não perdeu a chance de desenhar no ar um coração com as mãos, acompanhado de um "own" arrastado e debochado.
Cibele disparou um olhar fulminante para o irmão, mas não disse nada. Apenas segurou a mão de Bruno e o puxou para dentro com aquela intimidade de quem já era quase da casa.
— Bom dia, tia Fabrícia. Bom dia, tio Pedro — cumprimentou os pais de Bruno, sorrindo. — Nossa, que cheirinho bom...
— Mas olha só quem chegou! — exclamou Fabrícia, vindo logo abraçar os dois irmãos com entusiasmo.
Júlio, como sempre, foi furtivo o bastante para escapar com um simples aperto de mão da tia e um aceno discreto de cabeça para o tio Pedro, que continuava lavando a louça com a mesma expressão resignada de quem já vira aquela cena muitas vezes.
— O café tá na mesa, crianças. Podem se servir. Eu tenho mais o que fazer — disse Fabrícia, saindo da cozinha com pressa, seguida pelo marido, que mal disfarçava o incômodo em lidar com crianças.
Quando a casa silenciou, e o ruído dos adultos sumiu pelos cômodos, Bruno se inclinou levemente e confidenciou:
— Não dormi direito. E vocês?
De fato, ele passara parte da madrugada em claro, escutando os estalos secos dos tacos no assoalho e o canto dos grilos do lado de fora, tentando racionalizar o vulto da noite anterior. Convenceu-se, por fim, de que fora só a sombra de alguém distraído que passava pela calçada — talvez o vigia da rua ou algum bêbado perdido; mas a silhueta simplesmente não batia. Além disso, ainda havia algo no silêncio do portão vazio que o incomodava mais do que a própria aparição.
— Eu dormi como uma pedra — mentiu Júlio, enquanto passava uma generosa camada de manteiga em um pedaço de pão.
Cibele percebeu as olheiras no amigo:
— Ainda pensando naquele vulto de ontem, né?
Cibele também passou a noite pensando naquilo, pois, no fundo, não conseguia afastar a impressão de que o chamado que ouvira na visão ainda ecoava em algum canto do peito.
Resignado, Bruno bateu as mãos num estalo e disse:
— É hoje. A gente precisa investigar a casa da Dona Gertrudes. Não dá mais pra enrolar.
— Ah, claro. Porque a melhor forma de começar esse clube do mistério de araque é invadindo a casa de um velha morta logo após o café da manhã — ironizou Júlio, já mordiscando a fatia com uma quantidade indecente de manteiga.
— Ninguém vai invadir nada — corrigiu Cibele. — Mas a gente pode passar lá e observar. Só observar. Pelo menos por enquanto.
— Você tá falando sério, Cibele? — retrucou Júlio, levantando as sobrancelhas, pasmo. — Ontem foi zoeira, mas obviamente a velha não morreu e ficou largada lá. Se tivesse acontecido algo assim de verdade, já tinha polícia, ambulância, e o escambau todo na porta dela. Vocês tão achando que vão encontrar o quê lá?
— Não sabemos — rebateu Bruno, firme. — E é por isso que se chama ‘investigação’. A gente tem uma pista. E vai ver aonde ela leva para resolver o caso.
— Mas que pista? Que caso? A gente não tem caso nenhum, caramba! A meu único mistério no momento é como passar daquela maldita fase do castelo do Super Mário.
Enquanto os dois se atracavam na discussão, Cibele se levantou, devagar, quase hipnotizada; os olhos fixos na pequena TV de 10 polegadas no suporte de canto da cozinha.
Bem lá no fundo, como se viesse de um lugar enterrado sob camadas espessas do inconsciente, ela ouviu mais uma vez:
“Cibele…”
O som era tênue, mas real. Quase sem perceber, como movida por um fio invisível, ela estendeu a mão e ligou o aparelho, que já estava sintonizado no canal quatro.
Os dois meninos interromperam a discussão no mesmo instante ao perceberem a voz rouca de uma jornalista local vindo da televisão. Com um tom grave, ela narrava a matéria do momento: moradores de diversos bairros de Teresina afirmavam ter visto luzes estranhas cortando o céu nas últimas noites. Em seguida, a imagem tremida de uma filmagem amadora tomou a tela — pontos luminosos dançavam no firmamento, fazendo curvas abruptas e desaparecendo num piscar de olhos.
Pode ter sido por causa da qualidade ruim da gravação, feita por um cinegrafista amador, mas, ao que parece, as luzes piscavam bem acima do bairro deles.
Júlio sem dúvida foi o mais impactado dos três. Mesmo com todo o ceticismo aparente, aqueles luzes amarelas dançando aleatoriamente nos céus de Teresina, mexeu com o brio do menino, que sempre foi fã declarado do Raul Seixas. Na mesma hora cantarolou, bem baixinho: “oooh, ô seu moço, do disco voador…”
— Ô Bruno, o Gordinho ainda tá pagando os dez mil pela bola que caiu no quintal da velha?